
António Galopim de Carvalho
A HISTÓRIA ENSINOU-NOS QUE QUEM FAZ A LÍNGUA É QUEM A FALA E ESCREVE.
«“Para o geógrafo ou para o geólogo, o termo “arriba” designa os escarpados
menos ou mais elevados, próprios de margens de rios muito encaixados (p. ex. no
vale do Douro Internacional) ou de litorais catamórficos (forma erudita de
dizer que estão expostos à erosão das vagas), observáveis em grandes extensões
da Costa Vicentina ou nos Cabos Espichel, da Roca e Mondego.
Podemos encontrar este mesmo conceito referido pelo termo “falésia”.
Acontece que ambos os termos podem ser lidos tanto em textos científicos como
em outros pedagógicos, de divulgação ou de ficção.
Arriba e falésia são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Arriba é uma
palavra antiga que fomos buscar ao latim “ripa”. Falésia é um aportuguesamento
relativamente recente da palavra francesa “falaise”. Autores há que, numa
atitude purista da língua, repudiam este último termo, apodando-o de
francesismo desnecessário.
O meu professor Carlos Teixeira (1910-1982), grande referência no
engrandecimento e valorização da Geologia em Portugal, senhor de uma linguagem
escrita sem intenções ou preocupações de estilo literário, mas impecavelmente
correcta, repudiava liminarmente o vocábulo “falésia” e riscava-o, nos muitos
textos dos seus alunos e colaboradores, entre os quais me contei, que
pacientemente lia e corrigia, ensinando-nos a escrever em bom português.
Também o professor Orlando Ribeiro, geógrafo e humanista de craveira
internacional, senhor de muitos saberes, que expunha numa linguagem falada e
escrita de invulgar correcção e beleza, não raras vezes poética, que marcou a
minha maneira de encarar as ciências da Terra, a um tempo, naturalista e
cultural, rejeitava, igualmente, o termo “falésia”.
Acontece, porém, que na toponímia oficial, a par de designações como
“Arribas do Douro”, no Parque Natural do mesmo nome, no distrito de Bragança, e
“Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica”, conhecemos as de
“Aldeia da Falésia” e “Praia da Falésia”, no Algarve.
Uma atitude idêntica destes mestres tinha lugar face aos vocábulos
“barranco” e “ravina”, duas formas de referir os sulcos menos ou mais profundos
escavados pelas enxurradas pluviais nas cabeceiras dos cursos de água. O mesmo
se passando com os termos derivados “abarrancado” ou “ravinado” e
“abarrancamento” ou “ravinamento”.
De origem pré-romana, barranco (ou barroca) é palavra popular autóctone
adoptada no vocabulário geográfico e geológico. À semelhança de falésia, ravina
entrou-nos por aportuguesamento do francês “ravin”, num testemunho da
francofonia que foi tónica no nosso meio académico nos anos que antecederam o
último quartel do século XX.
Neste período áureo da penetração da inteligência gaulesa na nossa vida
cultural e científica, em particular no ensino superior e na investigação
científica, a língua de Molière dominava nos compêndios e manuais de estudo.
Porém, os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) deram
hegemonia ao inglês, situação que se tem vindo a acentuar com a globalização de
múltiplos sectores da actividade dos povos deste planeta já referido por alguns
por “aldeia global”. No léxico geológico assisti à invasão de vocábulos como riple,
rifte, silte, gnaisse, grauvaque, loess, intertidal, e muitos outros, por
aportuguesamento de termos anglo-saxónicos e, por falta de termos nacionais, à
adopção pura e simples de termos estrangeiros, como “horst”, “graben”,
“iceberg”, “tsunami”, “terra rossa”, “raña”, “palygorskite”, entre muitos
outros.
Praticamente, todos os dias a nossa língua vê o seu léxico aumentado por
via dos progressos científicos e tecnológicos. Eu próprio criei, em 1988, o
neologismo “exomuseu” incluído na expressão “Exomuseu da Natureza”, designação
ainda não oficial de uma estrutura museológica dispersa no território nacional,
constituída por vários pólos situados onde quer que ocorram elementos
considerados de interesse em termos de património natural, fazendo parte de um
conjunto coordenado a partir de um ou mais centros com competências científica
e pedagógica adequadas (uma Universidade, um Município, uma Fundação). Não
constando ainda dos dicionários, o termo “exomuseu” existe nos protocolos
assinados entre o Museu Nacional de História Natural e diversas autarquias.
A miscigenação cultural decorrente da facilidade e rapidez das comunicações
na sociedade cada vez mais mundializada é outra via para o dito aumento.
Não prescindimos hoje de palavras da nossa vida corrente como, por exemplo,
“evoluir”, “implementar” e “controlar”. E que dizer de “clicar” e outros termos
hoje habituais na sociedade das novíssimas tecnologias e da informática?
A história ensinou-nos que quem faz a língua é quem a fala e escreve e
estou em crer que todos estes e muitos outros termos, goste-se ou não, vieram
para ficar.”
Na imagem: Falaises près de Pourville,
por Claude Monet (1840-1926)»
António Galopim de Carvalho - A história ensinou-nos que quem faz a língua é quem a faz ou escreve [em linha.].[Consultado em 19.05.2020]. Disponível em WWW <URL: http://sorumbatico.blogspot.com/2020/05/a-historia-ensinou-nos-que-quem-faz.html>