quarta-feira, 24 de junho de 2020

História. A epidemia que veio de Espanha e matou mais de 60 mil portugueses




De um dia para o outro, em 1918, as pessoas começaram a morrer em Vila Viçosa e o número de mortes não mais parou até atingir muitos milhares em pouco meses. Em três ondas, a pneumónica - também conhecida por gripe espanhola - matou principalmente jovens e não poupou nenhuma classe social em Portugal.
A gripe que começou nos EUA mas ficou conhecida como “espanhola”. 18 meses foi quanto tempo demorou a conter o vírus da pneumónica, que varreu o mundo de março de 1918 a agosto de 1919.
Em Portugal, o número oficial de vítimas foi superior a 60 mil. A doença varreu o país a uma grande velocidade, tanto assim que a falta de caixões para os funerais foi um dos resultados imediatos, o que fazia com que muitas famílias os comprassem por antecipação e guardassem debaixo das camas onde os seus membros agonizavam. A pneumónica apanhou o mundo e as autoridades sanitárias desprevenidas, até porque ainda se desconhecia a existência do vírus, e Portugal não escapa ao surto quando, no final de maio de 1918, surgiu o primeiro caso em Vila Viçosa e rapidamente o contágio se propaga pelo país de sul para norte. Os mortos portugueses são uma ínfima parte dos mais de 20 milhões de vítimas em todo o mundo – embora existam estimativas que apontam para números bem mais altos –, mas é um número tão impressionante que pode ser considerado o mais alto para uma doença do género em Portugal.
As origens da pneumónica, a nível mundial, nunca foram exatamente localizadas, havendo várias teorias, entre as quais a de ter nascido na Ásia ou em cidades europeias como Brest ou Bordéus. Os últimos estudos apontam os Estados Unidos como o local onde surgiram os primeiros casos. A sua entrada em Portugal deu-se através dos trabalhadores sazonais portugueses que iam para Badajoz e Olivença e que trouxeram a doença para a localidade alentejana de Vila Viçosa, onde no fim de maio ocorre a primeira morte. No dia 4 do mês seguinte, é registado outro caso em Leiria, confirmando a fácil propagação em todo o território, pois vai da zona perto da fronteira com Espanha – seguir-se-ão Guarda, Castelo Branco, Beja e Évora – para o litoral e chega rapidamente aos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto. Segundo cálculos oficiais, os índices de maior mortalidade verificaram-se em Benavente, onde sete em cada cem pessoas morreram da gripe.
Não existem muitos documentos fotográficos nem notícias sobre a pneumónica em Portugal porque a Iª Guerra Mundial dominava as atenções.
O desconhecimento do vírus que estava na origem da epidemia dificultou o seu combate e o caos político e social que Portugal vivia tornou ainda mais complexa a sua contenção. As notícias que iam surgindo nos jornais eram poucas, até porque se estava em plena Guerra Mundial. No Diário de Notícias de 29 de maio de 1918, o primeiro título era "A Guerra" – que se manteria por muito tempo a abrir a edição – e só na oitava de dez colunas de noticiário é que surgiam ecos da pneumónica: "A epidemia em Espanha", e avisava-se o seguinte: "É provável que em Portugal também venha a sentir-se." Os sintomas das vítimas eram incompreensíveis para a época e questionava-se se seria cólera.
Para tornar a situação mais complexa, a propagação era rápida devido a haver nesses meses de verão muita circulação de pessoas por causa do trabalho agrícola em diferentes locais, além da proliferação de festas e romarias: "Eram deslocações que aconteciam muitas vezes para o outro lado da fronteira, onde a doença grassava de forma intensa. Controlar as populações era coisa impossível, pois reagiam mal às determinações das autoridades sanitárias, tendo mesmo existido violência."
Quando se questiona se se poderia ter combatido a pneumónica de forma diferente do que aconteceu em Portugal em 1918, a investigadora Helena Rebelo de Andrade, do Instituto Ricardo Jorge, considera que não: "Tendo em conta os conhecimentos da época, fez-se tudo o que era possível. Não se conhecia o vírus e existia uma grande discussão na literatura médica da época sobre a causa da doença. Como a primeira onda teve um carácter mais benigno do que a segunda, que se caracterizou por casos mais graves, com relatos de síndrome de dificuldade respiratória aguda, de pneumonia fulminante com mortes súbitas, muitos duvidaram de que se tratasse apenas de gripe". Dessa forma, eram várias as "opiniões divergentes" quanto às causas e às formas mais eficazes de tratar a doença. "Apesar de todo o arsenal de conhecimento decorrente das descobertas da bacteriologia do final do século XIX, os conhecimentos sobre a gripe eram incipientes. As medidas tomadas para combater a pandemia foram semelhantes às aplicadas para o tifo exantemático e para a peste bubónica, com banhos obrigatórios e a desinfeção de roupas e casas, o isolamento de doentes e dos seus contactos, as vistas domiciliárias e a notificação obrigatória dos epidemiados, com a cidade dividida em áreas sanitárias e a obrigatoriedade de guias sanitárias para os viajantes. Perante a gravidade da segunda onda, tomaram-se muitas medidas para combater a pandemia num curto espaço de tempo, no entanto insuficiente perante a rapidez e a violência da epidemia e a enorme carência de recursos."
Quanto ao papel de Ricardo Jorge, Helena Rebelo de Andrade refere-o como importante: "Na qualidade de diretor do Conselho Superior de Higiene e de diretor-geral de Saúde, a Ricardo Jorge deve-se a coordenação do combate à epidemia de gripe em 1918 e 1919, tendo promovido medidas sanitárias que passaram, entre outras, pela informação da população, a organização de serviços sanitários de emergência, a imposição de medidas preventivas. Perante a gravidade da segunda vaga da epidemia, foi--lhe atribuído ainda as funções de comissário-geral extraordinário do governo. Severo crítico do fecho das fronteiras de Espanha, Ricardo Jorge empenhou--se, sob o pseudónimo de Doutor Mirandela, na denúncia, em artigos de opinião, do Muro da China erguido pelos espanhóis, defendendo a ineficácia do cordão sanitário."
A resposta política em 1918 teve ainda uma grande ajuda do presidente Sidónio Pais, atuação que a investigadora confirma: "Ele fez da pneumónica uma bandeira política, viajou pelo país inteiro numa campanha de proximidade com a população numa altura muito conturbada. Éramos um país maioritariamente rural, com sucessivas epidemias e as consequentes crises sanitárias, a viver uma crise política e com a Primeira Guerra Mundial como pano de fundo."

Quanto ao facto de a população jovem ser das mais afetadas, aponta várias razões: "A movimentação das tropas poderá ser uma, pois é uma população jovem ativa e que está junta nos aquartelamentos militares, favorecendo uma taxa de ataque maior, além de que os mais velhos já tinham tido contactos anteriores com gripe que deixaram alguma proteção. Também a má nutrição decorrente da extrema pobreza deixava a população mais vulnerável, contribuindo para propagar a doença e aumentando o número de casos mais graves."
Amadeo e António Fragoso
Se no povo de Vila Viçosa falta memória, já os descendentes de portugueses cuja carreira ficou pelo caminho não se esquecem. É o caso do pianista António Fragoso, que vivia na Pocariça, local onde a pneumónica foi devastadora e atingiu dezenas de famílias. Para o descendente Eduardo Fragoso, foi um dos casos mais dramáticos na povoação: "Os meus avós viram partir quatro filhos em cinco dias e o pianista foi o primeiro a morrer." A mãe de Eduardo Fragoso foi a única que se salvou e quis homenagear o irmão, divulgando ao máximo a sua obra, tendo conseguido um contrato com a Valentim de Carvalho para editar a obra completa, mesmo que o incêndio do Chiado tivesse provocado a destruição de parte do espólio. Grande parte da obra foi gravada, como a Integral para Canto, Piano e Câmara e várias peças emitidas pela Emissora Nacional. Neste centenário da morte será editada uma biografia atualizada à luz de todas as descobertas mais recentes, como a de ter composto a primeira obra aos 12 anos.
É também o caso do pintor Amadeo de Souza-Cardoso, que há poucos anos teve uma mostra quase integral da sua obra exposta na Fundação Calouste Gulbenkian e mais recentemente no Grand Palais, em Paris. O historiador Luís Damásio, casado com uma familiar do pintor, tem estudado a sua vida e vai publicar uma biografia em dois volumes com novos e importantes aspetos, designadamente sobre as condições da própria morte do pintor nascido em Manhufe. É o caso de uma última carta do pintor dirigida ao irmão António, em que "já descrevia alguns sintomas de mal-estar. Vai ter o cuidado de se prevenir pois Amadeo revelava um pressentimento trágico para o futuro da família". A 25 de outubro, "depois de uma noite de grande aflição, morre em Espinho", conclui o historiador.
A pneumónica não abandonou Portugal antes de ter feito mais de 60 mil vítimas mortais. Após a primeira onda, que vai de maio a final de julho, a segunda irá até janeiro do ano seguinte. A terceira onda, que nem todos os países registaram, irá durar até ao verão de 1919. Enquanto isso, a 4 de outubro de 1918, o jornal A Luta publicava a seguinte notícia: "Pode dizer-se que já alastrou por todo o país, e em Lisboa grassa com intensidade. Mandou o governo que não prosseguissem os exames nos liceus e que todos os estabelecimentos de ensino não funcionem até nova ordem. É certo que os teatros e os animatógrafos continuam abertos, e aí a multidão, para efeitos de contágio, é mais perigosa do que nas escolas. Divergem as opiniões quanto à natureza da doença..."

Referência:
João Céu e Silva - A epidemia que veio de Espanha e matou mais de 60 mil portugueses [em linha], Lisboa: Diário de Notícias, 17.3.2018. [Consultado em 20.06.2020]. Disponível em WWW <URL: https://www.dn.pt/portugal/a-epidemia-que-veio-de-espanha-e-matou-mais-de-60-mil-portugueses-9195035.html>.